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  • Segunda-feira, 29 de novembro de 2004


    Poesia e preconceitos

    Mas

    é limpinha.

    (Francisco Alvim)

    Confesse. Ao ler esse verso pela primeira vez somos tentados a dizer: isso, definitivamente, não é um poema. Quem que tem coragem de publicar uma coisa dessas, que falta de criatividade e etc.

    Mas, quem saberia definir o que é literatura? Para que serve? O que é poesia?

    Não há respostas fáceis. Poderíamos buscar as mais diversas definições, bebendo na fonte dos grandes que nos antecederam, nos filósofos gregos, nos renascentistas, nos românticos alemães, nos acadêmicos americanos, nos modernistas brasileiros e, sempre, encontraríamos uma definição que, embora não errônea, seria incompleta.

    Porém, esses estudiosos todos, ou quase, concordam nisso: a arte, como a conhecemos hoje, está ligada ao belo, ao que sobressalta da normalidade, seja lá o que signifique esse belo. O mais curioso é que almas sensíveis diariamente se deparam com o belo, são encantados por seu conjunto, atraídos por seus detalhes, sentem sua força vencida pela do outro e. mesmo apreendendo a sua beleza, experimentando-a na mais intensa verdade, ainda assim, não são capazes de definir a arrebatadora sentença que esclareça o que é a literatura, para que serve e que diabos é a poesia.

    Como discutir o sexo dos anjos não é o mesmo que fazer sexo com os anjos, então, a bem da verdade, faremos isso na prática, pois, afinal, para que conceitos? Quando não bem fundamentados geram não esclarecimento, mas preconceitos. E preconceito é o grande muro que separa o objeto de arte e o acontecimento que ele desperta. Hume, filósofo Inglês, afirmou que para se poder tecer um comentário sobre uma obra de arte é necessário haver uma experiência justa com a mesma, estando livre de todo preconceito. Não à toa, caso ainda não tenha percebido o leitor, PRECONCEITO é o tema do primeiro poema que analisaremos nessa coluna.

    “Mas, é limpinha” possui os elementos suficientes para ser um objeto uno onde as partes e o todo coexistem em uma perfeita integridade que expressa uma visão de mundo e comove quem a experimenta. O primeiro aspecto que devemos ter sempre em mente é esse: POESIA é a arte da criação pelas palavras, das palavras e na recriação das palavras, no jogo imprevisto do uso de vernáculos que, através da inspiração do dom do poeta e da técnica (que é a tradução de arte, para quem ainda não sabe) se manifesta em obra de arte. “Mas é limpinha” é um termo que nós usamos no dia a dia. Mas sempre acompanhada de uma outra sentença, que não está no poema, mas está, com certeza, na visão de mundo de todos os que falam a língua portuguesa. Ouve-se todo dia: “É preta, mas é limpinha. É pobre, mas é limpinha. É lerda, mas é limpinha. É preguiçosa, mas é limpinha, etc…”.

    Percebemos agora que o que parecia ser uma brincadeira de mau gosto é, na verdade, um jogo de palavras criativo que com um único verso, consegue traduzir um sentimento de nossa brasilidade, desse preconceito cordial, que aceita os defeitos por causa das qualidades, mas que não deixa de apontar os defeitos com a crueldade de quem diz não ter preconceitos, mas certamente os tem. O fato de ter o poeta escolhido “é limpinha” ao invés de “é limpa” para aumentar a intensidade da transmissão desse sentimento de complacência, um falso compadecimento. Preconceito da pior espécie é aquele que categoriza sem possuir propriedade de fazê-lo, que trata com carinho, mas que ao mesmo tempo torna menor, inferior, subalterno. A língua, segundo os psicanalistas, materializa o sentido dos sentidos, do ser e dos sentimentos e esse poema materializa no uso do diminutivo a nossa soberba e estranha cordialidade, o preconceito de quem, sendo igual, inferioriza a seu semelhante. O que é GENIAL é que o poeta para nos cutucar sobre o PRECONCEITO, compôs um poema que muitos o ridicularizaram por puro PRECONCEITO, um conceito formado antes mesmo de analisar ao poema, simplesmente por que era um poema de um verso só. A FORMA e o CONTEÚDO se integram perfeitamente. Essa é a diferença mínima entre um objeto e um objeto de arte. O Poeta EXPRESSOU sua mensagem em um FORMATO adequado. Nada na grande obra de arte é fortuito, tudo tem uma intenção (ou até segundas e terceiras intenções).

    Francisco Alvim, diplomata e poeta, com um verso mostrou um universo de verdades que nos apontam o dedo e mais, nos cutucam na ferida exposta das nossas desigualdades e incoerências sociais e serve perfeitamente para definir, entre as centenas de definições que poderíamos escrever, e nenhuma definitiva, que toda essa engenhosidade manifesta num singelo, mas multifacetado objeto de palavras é arte e que comove, que expõe uma visão de mundo, que leva à reflexão, que causa humor, estranheza, aborrecimento e nos transporta com elegância para a realidade, nos sacode, nos movimenta, nos acorda, nos ensina. Para tudo isso existe, é necessária e serve a literatura. Isso é poesia.

    Até semana que vem.

    Weider Weise

    PS: Cabe aqui um agradecimento ao Professor Dr. Jorge, que num maravilhoso semestre de Estudos Literários na USP, nos fez enxergar a beleza oculta nessas coisas.

    O poema analisado se encontra no livro Elefante, Companhia das Letras, 2000.